Fragmentos

Um dia desses estava esperando o bondinho para subir Santa Teresa quando percebi três garotos, entre aproximadamente 09 e 12 anos, sentados num cantinho do abrigo. Eles estavam descalços e as poucas roupas que vestiam denunciavam o total abandono a que se encontravam. Enquanto cochichavam alternavam momentos de lucidez com loucura e, da ponta do lençol que um deles trazia enrolado ao corpo, inalavam um pouco mais do mundo mágico proporcionado pela cola de sapateiro, droga comum entre os moradores de rua. Em alguns momentos um deles levantava e apontava para algo que só para sua imaginação existia, às vezes dava socos no ar, conversava e dava risada, depois se entristecia voltando a sentar-se com os demais para inalar um pouco mais daquela alegria fugaz. Fiquei do meu cantinho observando-os por meia hora enquanto constatava a existência de mundos paralelos; As pessoas que, assim como eu, também estavam esperando o bonde, não se incomodavam com a situação, olhavam para as crianças e através delas. Aquilo já fazia parte do cotidiano da maioria deles, acreditavam nada poder fazer e aos poucos iam transformando estes sobreviventes em figuras invisíveis, perceptíveis somente aos olhos, mas não ao coração.
Assisti há algum tempo um documentário chamado Janelas da Alma onde, entre outros narradores, José Saramago chamava a atenção para as maneiras como o mundo se apresenta ao individuo. Ele explicava que os olhos eram janelas da Alma e que existia uma diferença muito grande entre Ver e Enxergar. Enquanto via-se com os olhos enxergava-se com o coração...
No momento em que estava lembrando dessa passagem novamente outro dos meninos levantou-se e, olhando para os cabos elétricos que conduzem o bonde, os apontava repetindo que estes se mexiam. Eu já não sabia, devido a tamanha convicção com que este insistia, se era pelo efeito da cola ou se era verdade. Então demorei os olhos por alguns segundos nos cabos e acabei percebendo que estes, quase imperceptivelmente, se mexiam. Seria eu que estava vendo coisas agora? Um minuto depois escutei o bonde aproximando-se. Os meninos aprenderam a identificá-lo a quase 1 km de distancia. Tendo finalmente chegado ao ponto o bonde parou e em meio aos que subiam e desciam dele os três novos passageiros procuravam as melhores posiçôes para fazer a pequena viajem por cima dos Arcos da Lapa até a estação carioca. E assim o Bonde partiu lotado de turistas e moradores, entre desconfiados e piedosos, e alguns metros depois ainda escutava-se o sorriso dos três novos tripulantes em meio aos flashs das câmeras fotográficas daqueles que muito viam, mas pouco enxergavam.

Comentários

Fabio Tihara disse…
Belissimo texto Daniel!!!vc realmente é um cara de muitas virtudes!!!e enxerga a realidade como poucos!!!parabens

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