Negócios de Família




Eram 21:25, em meia hora os guardas trocariam de turno. A área do lixão clandestino de Plinio Correia,  cidade com 18 mil habitantes localizada no extremo sul da Bahia, era protegida por quatro vigilantes que revezavam aos pares na ronda. Munidos de rádio, lanternas e revolveres, patrulhavam do alto do morro a presença de curiosos. O esquema do lixo seguia enriquecendo e promovendo os negócios políticos de antigas famílias, facções e milícias. Não era nenhuma novidade para a imprensa, mas esta, por também pertencerem ou estarem ligados a interesses em comun, pouco ou nada comentavam a respeito, enquanto isso novos e clandestinos lixões seguiam proliferando entre as cidades do interior do Brasil.

As máfias do lixo possuíam ramificações em todas as esferas da sociedade e orbitavam as prefeituras do país. No que concerne separação e destino, essas empresas eram responsáveis por metade dos processos ambientais emitidos pelos órgãos de nacionais de fiscalização. Não que o estado estivesse atuando de forma exemplar, não, longe disso, as denuncias eram feitas em sua maioria por ativistas e Ongs que, apesar de terem conhecimento dos perigos que corriam, seguiam por conta própria fiscalizando e denunciando.

Os Negócios da família Resendes iam de vento e polpa, atuavam desde da década de 80 e haviam alcançado nos dias atuais contratos com 46 municípios do nordeste, chegando a movimentar 2,6 bi por ano. Contavam para isso com padrinhos e afilhados entre os novos e antigos partidos. Financiavam de campanhas politicas à construções de templos, e atuavam aberta ou secretamente nas áreas de projetos imobiliários, mineração, Asfalto, fontes de água mineral, gás, agiotagem, grilagem, cerrarias clandestinas, postos de gasolina, prestadoras de serviços públicos terceirizados de fornecimento de eletricidade, água, esgotos, internet, poda de árvores, aluguel de veículos e maquinários para os municípios. Tudo girava em torno das prefeituras. Se orgulhavam por terem sido os primeiros a explorarem os negócios das Balsas e Ferry boats. Entre todos os contratos, os da área de esgoto e lixo eram os que pior desenvolviam deixando na idade média as cidades onde atuavam. Segundo seus projetos, todo esgoto deve correr para os rios e para o mar. As cidades de Itabuna e Ilhéus eram a prova de que empresas como aquelas não estavam capacitadas a serem contratadas como prestadoras de serviço. Canais foram construídos para criminalmente conduzirem todo o esgoto para o rio Cachoeira e Almada desaguando nas praias. Através do Bairro do Malhado, em Ilhéus, passando pela central de abastecimento, corre o maior e mais antigo desses vergonhosos canais de escoamento de esgoto, levando a idílica praia do Marciano a ser nomeada como a praia do côco. É revoltante assistir o descaso com que políticos, fazendeiros e empresários seguem saqueando as cidades enquanto o povo, em sua grande maioria afrodescendentes e indígenas,  disputam palmos de terra nas muitas "apropriações ambientalmente irregulares" que deram origens a bairros onde as novas gerações seguem sobrevivendo em estado de extrema pobreza e abandono. 

Dandara os conhecia bem, sabia dos riscos e estava disposta a denunciá-los. Na noite de 23 de julho de 2011, dois dias antes da tragédia, ela havia reunido-se com Gil, amigo faz tudo responsável pela produção de suas reportagens, feitas na maioria das vezes com uma câmera mini Dv da Panasonic, e discutido todos os detalhes daquela "missâo". Trabalhavam juntos desde do ginásio, época na qual acompanharam por uma semana o cotidiano de um assentamento na fazenda Jericó, uma entre as centenas de propriedades da família Resendes, os quais, com o aval de um juiz, ordenariam aos seus capangas, com a ajuda da policia local, uma violenta açâo de reintegração de posse que resultaria na morte de seis assentados, entre eles um menino de 12 anos. O líder do assentamento seria assassinado numa emboscada meses depois.

Nessa mesma época, dois netos do Clã dos Resendes haviam sido denunciados e absolvidos de um processo no qual foram acusados de exposição de menor e estupro. O caso tornou-se conhecido após a jornalista soteropolitana, Núbia de Oliveira, ter perdido o emprego por ter escrito um artigo num jornal de grande circulação o qual trabalhava, comentando a "conduta de alguns magistrados baianos", entre eles, Amédes Albuquerque. O Caso, segundo o artigo, havia sido inicialmente exposto num até então desconhecido blog de noticias locais pertencente aos estudantes de jornalismo, Gilberto Reis e Dandara Eliasson. Segundo haviam confirmado, o Juiz Amédes havia polemicamente julgado uma causa na qual uma estudante de 16 anos acabaria sendo acusada de incitar sexualmente, "pela forma como se vestia", os também estudantes e primos, Téo e Mauricio Resendes Pessoa. Segundo a vítima,  ---numa entrevista exclusiva duas semanas após o incidente, para o blog "Noticias Locais"---,  na madrugada de 23 de Agosto de 2008, os acusados a haviam abordado no estacionamento de uma casa noturna, na qual recordava ter exagerado no consumo de bebidas alcoólicas. "Após me sentir mal saí da boate e fui em direção do estacionamento procurar um moto-táxis para ir para casa".  Já do lado de fora, enquanto aguardava, a vítima foi abordada pelos acusados, que se aproximaram numa caminhonete preta, oferecendo-lhe carona.  "Me perguntaram para onde eu estava indo. Eu sabia quem eram, já havíamos nos cruzado em outras festas. Acabei aceitando a carona até o centro. Além de meio bêbada, estava também faminta. Precisava comer algo ante de ir para casa, era sempre assim, depois das festas todo mundo ia comer no trailer de Cosme. Antes da gente chegar no centro, alguém ligou pra Téo, que estava no volante. Pelo que eu entendi,  seguiam de festa, tinham bebidas e haviam pedido pizzas.  Lembro de ter pedido que me deixassem na praça dois de julho, que de lá eu tomaria um mototáxi pra casa. Eles insistiram para que fossemos juntos até o "after", que ia ser massa e tal. Não pude nem escolher. Riam me fazendo parecer otária em não querer ir. Quando percebi já estávamos entrando no condomínio. Além  de nós três, estavam o menino que nos convidou e duas outras meninas, que em um momento desapareceram. Me lembro de ter comido umas fatias de pizza e de ter tomado uma ou duas cervejas, lembro também de tentar ligar para o número da praça dos mototaxis, precisava ir embora, já era mais das três da manha.  Depois disso tenho alguns flash de memória onde alguém tenta me acordar no sofá, a música alta se confundia com risadas e empurrões. Por mais que eu tentasse não conseguia me levantar do sofá, era como se o mundo todo houvesse desabado encima de mim, sei lá, com se tivesse tomado uma garrafa inteira de vodka. Lembro que quando cheguei com eles na casa eu já não estava mais tão bêbada. Tenho certeza que eles colocaram algo em minha cerveja, tenho certeza. Aquela onda não parecia com nada que eu já havia passado. Em um momento me liguei que alguém  havia tentado tocar em minha vagina, tentei me proteger com as pernas, não dava pra ver se tinha sido Teo Ou Maurício. Eles davam risada, me pediam pra curtir com eles, lembro do flash de câmeras. Conseguiram me imobilizar enquanto tiravam minha calcinha. Fui mantida todo tempo deitada de costas no sofá. Depois lembro que consegui ir pro banheiro, vomitei agarrada no vaso. Quando saí mal conseguia me equilibrar. Daí me levaram de carro e me deixaram na praça central.  Fiquei ali sentada por um tempo num banco em frente da rampa de skate. Sentia nojo, raiva, vergonha, dor. O dia já estava amanhecendo, eram seis quadras até minha casa.  Ao tentar abrir a porta, acabei acordando minha mãe, que tava retada,  me jogou na ducha e depois me colocou na cama. Dalí eu só despertaria dezoito horas depois, cheia de dores. Infelismente não tinha sido um pesadelo. Meu mundo desabou. Depois de uns dias apareceram as primeiras fofocas, amigos me ligando, escrevendo. Não podia acreditar que estavam fazendo aquilo comigo, que além de tudo ainda estavam agora dividindo os vídeos e fotos entre eles. Alguns amigos me escreviam perguntando como que eu havia caído naquela. ---" Esses caras são uns babacas estupidos, acham que podem tudo só porque são Ricos e Brancos! Você não sabia?!" ...

Durante duas semanas não fui a escola, não queria nem conseguia encarar ninguém. Precisava contar aos meus pais antes que eles descobrissem por alguém.

Choraram comigo, se indignaram. Meu pai precisou de cuidados médicos, ele é hipertenso, aquilo tudo parecia um pesadelo sem fim". 


A entrevistada conta que foi procurada por um advogado que insistiu em lhe fazer pensar ter incentivado e concordado com os atos sexuais. ---" É natural,  você ter se arrependido de ter estado com meus clientes, isso acontece o tempo todo entre vocês jovens. Os meus clientes irão ser responsabilizados pela lei por terem compartilhado as imagens, e pronto. Se a senhorita insistir com as insinuações de que meus clientes a estupraram, iremos entrar com um processo judicial por calunia e danos morais. Mesmo porque não há nenhuma prova ou testemunha. Nos videos não se percebe nenhuma tentativa sua de resistir. Não consta nos exames de corpo de delito nada que qualifique um estupro, pedimos que por favor retire a denuncia e aceite a indenização. 


Quatro meses depois a vítima aceitaria o acordo e o juiz Amédes daria por encerrado o caso.  Os primos Téo e Maurício Resendes  Pessoa prestariam serviços sociais demonstrando assim estarem acima da lei. O juiz Amédes de Albuquerque seguiria prestando serviços jurídicos e de consultoria aos Resendes através de um escritório de prestígio que mantinham na capital soteropolitana. 

Hoje, onze anos após o estupro, pouco ou nada se sabia sobre o paradeiro da vítima e seus familiares. Segundo os vizinhos, haviam vendido a casa, colocado tudo num caminhão baú e ido embora para Minas.

Antes disso Dandara voltaria a se encontrar duas outras vezes com Aline (codinome que utilizou quando a entrevistou) mas escutaria da vítima a versão que constava nos autos.  Aquilo fazia com que sentisse como estivesse sendo mais uma vez derrotada, seus esforços não haviam sido suficientes para poder assistir as consequências positivas de suas matérias, levando-a a pensar, até mesmo, em desistir da carreira de jornalismo. Seguiria cobrindo outras polêmicas, gostava de dizer que era boa de faro e de briga, e mais do que nunca, miraria seu radar sobre os negócios da família Resendes.


Ali estava ela agora com o inseparável Gil, dispostos a filmar o destino ilegal do lixo recolhido em seis municípios pela empresa de coleta "Ideal", pertencente ao Clâ dos Resendes. Havia escrevido para Núbia contando os detalhes sobre a reportagem que estava preparando para o Blog "Noticias Locais" e recebido desta a garantia de ter a reportagem vinculada em outros veículos de notícias da capital. Núbia a havia convidado ir pessoalmente a Salvador para que a pudesse apresentar a outros jornalista investigativos. O nome de Dandara Eliasson estava sendo cogitado para integrar o corpo de uma importante mídia digital a qual possuía entre seus apoiadores nomes como Raquel Valença, Aren da Silva, Dume de Azevedo, Di Maria, entre outras. 

Nubia de Oliveira havia recentemente escrito um livro intitulado "Honoráveis Bandidos" no qual traçava um panorama sobre a atuação politica dos atuais coronéis da politica nordestina, em especial a baiana e maranhense. 

Infelizmente naquela noite Dandara e Gil seriam flagrados pelos vigias ao tentarem utilizar uma árvores de flamboyant próximo a cerca para obterem melhores imagens dos veículos descarregando indiscriminadamente o lixo no local. Segundo Gil, os vigias efetuaram quatro disparos no total, um deles atingindo o tórax de Dandara.  

" Foi tudo tão rápido, lembro de ter escutado Dandara me pedir para que ligasse para a ambulância, que havia sido atingida. Um dos vigias tinha um pastor alemão,  ele latia raivoso nos impedido de descer. Gritei que éramos jornalistas e que Dandara havia sido atinga e precisava urgente ser levada para o hospital. Levaram uns vinte minutos falando com alguém por telefone, parecia uma eternidade, um pesadelo.  Me pediram que jogasse a câmera em troca de nos deixar ir. Nem pensei duas vez. Dandara chorava e tentava conter o sangramento. Nos ajudaram a descer, discutiam entre eles, gritei que me ajudassem a transporta-la até  o meu carro. Gritavam nervosos que tinham nos confundido com ladrôes, que a culpa era nossa e que poderia ter sido muito pior. Nesse momento o vigia que havia ficado na guarita veio correndo e falou algo ao ouvido de um deles, alguém os estava instruindo por telefone. Transportamos Dandara até um veiculo da empresa, a colocamos sentada no banco de traz ainda com vida, eu pedia pra ela que por favor fosse forte, que estávamos a caminho do hospital. Pegamos o caminho da estrada velha cortando por Trindade, a emergencia mais próxima ficava em Quatro Rios, uns 35 minutos de onde estávamos.  Ao chegarmo entrei correndo na emergência em busca de ajuda. Os dois enfermeiros que nos atenderam me pediram que entrasse junto, porquê pelo que tudo indicava Dandara iria precisar de uma transfusão urgente de sangue. Criei coragem e liguei para Odessa, a mãe de Dandara. Precisava contar o que tinha acontecido. Meia hora depois um deles me encontrou no corredor e me daria a noticia de que infelizmente a médica não havia conseguido salvar Dandara, que ela não havia suportado o ferimento, que o projétil a havia atingido o pulmão causando uma morte por embolia. 




Continua...

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