Primeira carta à Hernan
“Solo tengo como cierta
a la realidad de esta vida”.
Posso imaginar qual não deve ter sido sua surpresa em receber uma carta minha depois de tanto tempo. Bastante original, não concorda?Sinto-me como se houvesse vivido 10 anos para cada 1 que estive viajando e que tenha sido efusivamente engolido por dimensões sociais, amores, tarefas, responsabilidades, aventuras, amizades, sem nunca com isso ter deixado apagar a faísca de um dia poder viver através da renda de algo escrito por mim. Muitas vezes a vida nos supera e com uma luneta vamos vendo os sonhos mais originais afastando-se até quase sumirem no horizonte, quase.
Há dois meses, de passagem e hospedados na casa de um amigo em Barcelona, me inteirei pelo Instagram que Osmundo e Elisa estavam na Espanha e que iriam em dois dia chegar na cidade. Os escrevi e quando chegaram propus nos encontrar à noite numa pequena taberna localizada no Bairro Gótico e famosa entre a boêmia pelos Vermutes caseiros. Apesar de muito bom era barato e servido com gelo, pedaços de canela e casca de laranja, tomamos umas 6 garrafas enquanto falámos e ríamos de tudo.
Entre muitas coisas, algumas como sempre polêmicas, discutimos o crescimento vertiginoso das igrejas pentecostais e do fascismo no Brasil e da encefalia de Bolsonaro. Libertad nos contava sobre a situação crítica da política argentina, da herança brutal do machismo espanhol, da cegueira provocada pelo futebol, dos clássicos do cinema argentino atual, das nossas mochiladas pelo mundo e do arcaico nacionalismo católico, rudeza e falta de consciência histórica de muitos espanhóis. Dalí umas horas, após termos feito alguns comentários graciosos a respeito das viagens de Cristóvão Colombo, fomos questionados por uma espanhola que se encontrava em nossa mesa o porquê seguíamos na Espanha e convidados de forma jocosa a partir dali de volta para o Brasil. Teve início aê um bate boca geral que por pouco nâo saímos todos no tapa. Ridículo, Muitos espanhóis ainda acreditam terem nos feito um favor conquistando-nos ou invadindo-nos, como ebriamente lhes dissemos. Logo depois, saímos pelas ruelas cantando madrugada afora e uivando como vira latas. Foi uma noite homérica e cheia de personagens, faltaram vocês, rs.
Naquela noite Osmundo nos contou sobre o carro caindo aos pedaços que vocês alugaram em Bali, das centenas de ondas perfeitas surfadas, das comidas que provaram nas vilas… -- Fantástico! Fantástico! Repetíamos. Quiz muito estar junto com vocês naquela trip, não tenham dúvidas, mas na época as coisas haviam se complicado bastante para mim em Búzios e na Bahia. Havia sido um ano difícil, cometi alguns erros administrativos, elegi mal umas coleções, reajustaram o aluguel de uma das lojas, rescindiram o contrato de outra. Um pesadelo. Quando se instalou a Crise Política após a infeliz Copa do mundo o fluxo turístico caiu pela metade levando o comércio e o povo a agonizarem por meses e em muitos casos, como o nosso, a falência. Foi nesse período que vcs organizaram a viagem, realmente não dava para mim. Me alegro muito que tenham finalmente realizado esse sonho. Quantas vezes aí em Ilhéus escutando thievery corporation, Jorge Ben, planejamos fazermos juntos essa viagem? Já passaram 25 anos desde então, näo posso crer! Sigo escutando aqueles 3 discos do Massive Attack, lembrarei para sempre daquela época fértil e sonhadora de nossas vidas.
Voltando a meu momento atual: Sigo mochilando, escrevendo, aprimorando algumas ideias, amando. Minhas filhas já estão com 6 e 8 anos, cada dia mais espertas e lindas. Desde a separação seguem vivendo com a mãe em Estocolmo. Passo de 4 a 6 meses por lá com elas pagando as contas com uns bicos como garçom nos cafés, colando posters para uma agência de publicidade, e às vezes como assistente nas instalações e perfomances artísticas com um artista amigo, conseguindo assim juntar uma graninha para as viagens, para o aluguel de um quarto e uma pequena pensão que repasso mensalmente a mãe das meninas.
Já passaram 4 anos desde o divórcio, Olga e eu seguimos bons amigos, cada um com sua vida, as vezes nos desentendemos, mas a paz tem prevalecido.
Em meio a tudo isso, logo após a separação e enquanto ainda vivia em Búzios, conheci Libertad. 9 anos mais nova que eu, de raízes Bascas, Argentina, sangue caliente, anarquista e minha atual namorada e companheira de viagens. Vocês já devem estar a par de tudo, rs.
Não demorou muito Partimos juntos de mochila pelas chapadas e pelo Nordeste vivendo um zilhão de histórias. Caminhamos pela praia por semanas de Jericuacoara a Atíns, nos perdemos enquanto atravessamos à noite e, embaixo de chuva, os Lençóis Maranhenses. Brigamos às vezes por conta dos nossos temperamentos, da instabilidade de de algumas decisões e escolhas mas nos amamos feito bichos nos permitindo viver à nossa maneira nutrindo de inspiração e coragem nossa imaginação levando-nos a a dar inicio a um livro que já alguns meses venho rabiscando.
É a segunda vez que viemos juntos para Europa, ano passado fizemos de bike, durante 26 dias, quase toda costa Mediterrânea espanhola, coisa de cinema. Esse ano retornamos com a intenção de fazermos juntos a temporada em Ibiza, idéia que infelizmente nâo deu certo nos obrigando a mudar de Ilha….
Não pense que esqueci da promessa te fiz quando morávamos em Salvador. Surfávamos em Stella mares, combinamos de você ser meu Ghost writer, Lembra? Ainda guardo muita coisa na memória, precisamos voltar a falar sobre tudo, encontrar uma forma de transcrever bem algumas das histórias daquele período. Tenho guardada na casa de minha mãe umas caixas e acho que numa delas estão aquele pequeno gravador que usávamos, alguns recortes de jornais, fotos, e os meus diários. Devem estar tudo separados numa caixa menor ou numa sacola. Gostaria muito que você os analisasse. Posso pedir a Elisa que te ajude a procurar a caixa. O que acha? Tem minha permissão para tentar montar o quebra cabeça, corrigir, editá-los. Já passaram quase 20 anos desde então, juridicamente nâo deve dar nada. Na dúvida, todos os personagens devem ter seus nomes fictícios. deveríamos, quem sabe, evitar alguns pontos, imaginar outros.
Estarei por mais 3 meses morando no endereço desse remetente. Trata-se de um pequeno quarto numa casa(alojamento) que dividimos com mais 4 pessoas, as quais Libertad acertadamente considera qualquer coisa, no piso superior à cervejaria a qual trabalho, como permuta, por 3 horas todas as noite. Durante o dia estamos nas praias vendendo uns artesanatos que trouxemos de Arraial, daí provém toda a nossa renda dessa fase, não podemos reclamar, as vezes chegamos a fazer uns 350 euros num só dia. Tirando os conflitos da hospedagem, todo o restante é digno.
Bom, vou deixar o resto para contar quando nos encontramos ou em outra carta, aguardo a sua. Espero que tenha gostado da proposta e que possamos finalmente trabalharmos juntos nessa idéia.
Um forte abraco para voce e Martina.
Que a vida siga nos brindando com saúde e boas histórias.
Feliz Cumple.
De seu amigo, Ulisses.
13/09/19
Calle tarragona, 17
Sant ferran
Formentera, Espanha.
Porque Ulisses havia elegido este método para comunicar-se com Hernan? É muito provável que acreditava assim instigar Hernan a entrar em seu mundo, alimentando sua imaginação e curiosidade, o levando para passear através de um universo que ele cada dia conhecia melhor e que as cartas iriam durante os próximos meses aos pouco revelar. Sabia que Hernán iria ficar muito mais curioso sobre o material que atualmente estava escrevendo e que iria logo em seguida lhe enviar mensagens e emails pedindo mais informações acerca do livro sobre Ele e Libertad. Pretendia sim escrever mais sobre aqueles anos em Salvador, seu ego não o deixou queimar ou desfazer dos diários, precisava de alguém para imparcialmente interpretar sua época de malandro e canalha mas, entre todas, suas historias atuais o fascinavam mais. Se tudo desse certo era muito provável que lançassem os dois livros juntos, expondo assim de forma criativa o antes e o depois de alguns de seus ainda anônimos personagem. O pretendia para dali a oito meses, entre familiares e amigos, na festa dos seus 40 anos.
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