Desses que faz a vida



--- O que você quer? Dinheiro?...
--- Não. Não foi por isso que eu passei aqui.
--- Ok. Que estranho. Sempre que você aparece alguma merda te pesa nas costas. O que você acha que somos? Um órgão de caridade?! Nos deixe em paz!
--- Ei! Espera. Queria ver você e meus sobrinhos. Até quando vai seguir me tratando assim? ...
--- Não me venha com seus truques porque aqui nessa casa você já não é mais bem vindo. Vá procurar seus amigos do beco das garrafas, da Lapa, suma de nossa porta!
--- Eh... espera um pouco. O velho ficaria feliz em nos ver unidos. Você pode não acreditar mas eu também fui vitima disso tudo, aprendi com ele a gostar das corridas. Quantas vezes festejamos juntos com ele as vitorias de Palomo, foi nosso favorito por muito tempo. Lembra?
--- Você é mesmo um sem Vergonha. 
--- Belina, você não pode esquecer que essa casa também me pertence.
   Me bateu a porta na cara, pode uma coisa dessas? Tocar na noite paga meu aluguel e meus tragos. Malditos agiotas. Eles sim foram os culpados. Eu só amava estar junto com ele. Ainda posso escuta-lo através dos becos e da praça onde por tantas vezes brincamos com o vento, com a chuva e onde também por tantas vezes o vimos se equilibrando bêbado voltando para casa. Todos que o conheciam  sabiam que gostava de uma boa boemia. Não suportava repetição, mesmice,  enjoava das coisas com a mesma velocidade que fazia dívidas. A realidade era para ele sempre mutável, sorria com os pássaros banhando-se nos buracos do calçamento, do português da quitanda reclamando furioso com os turistas por fotografarem suas frutas. Soube como ninguém viver sua vida, dizia sempre que era a única. Após a morte de Odália, as coisas foram tomando outra forma e a mudança foi se fazendo perceber. "Amor assim desses que faz a vida ter sentido", nos dizia. Uns meses antes dele sumir havia passado a andar sempre com a mesma roupa do dia anterior ao acidente que a matou, e carregava sempre consigo uma pequena maleta na qual descobriríamos levar uns cadernos onde sempre escrevia e a ninguém mostrava, algumas fotos e um gravador onde numa fita a havia eternizado. Antes, quando queríamos, o encontrávamos quase sempre ou entre os quartos baratos da boca do lixo, ou na velha casa onde seguia apostando em algum novo cavalo os poucos trocados que não sabe-se como conseguia; Ou no café dos tolos, onde durante anos, como depois escutaríamos, às 11h da manhã pedia que lhe servissem uma taça de vinho tinto e uma porção com algumas fatias de pão fresco, as quais comia sempre com um azeite espanhol que fazia questão de pedir. Os quartos por onde passava estavam quase sempre vazios, duas ou três fotos nossas presas na lateral de um velho espelho ou de um quadro qualquer. Nas poucas vezes que nos deixou lhe visitar nos confidenciou que a única coisa da qual se arrependia na vida era de ter dito tão poucas vezes que a amava.    

  





OSMundo




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